Prólogo: Entre a agonia e a festa


O negro alto e magro, com o rosto devastado por cicatrizes de varíola,
parecia zonzo em meio ao burburinho do centro do Rio de Janeiro. José
Gomes da Costa, mais conhecido nas rodas de samba dos subúrbios cariocas
como Zé Espinguela, saíra cedo de casa, um barraco encarapitado no alto no
morro do Quitungo, em Irajá, Zona Norte da cidade. Apesar de ser dia útil,
uma manhã de outubro de 1939, ele descera para o asfalto envergando o
paletó domingueiro. Não esquecera o chapéu de palhinha, acessório
masculino obrigatório no vestuário elegante da época. Nas mãos, Espinguela
trazia uma folha de papel que de vez em quando desdobrava, para conferir o
endereço nobre, escrito em caligrafia escorreita ao final do bilhete: avenida
Almirante Barroso, 81, Edifício Andorinha, quinto andar, sala 534. Lá, em um
dos mais modernos arranha-céus da cidade, funcionava o escritório do
maestro Heitor Villa-Lobos, músico consagrado internacionalmente, que já
havia morado em Paris e regido orquestras nas principais capitais europeias.
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“Como tem passado, seu Zé?”, saudou Villa-Lobos. “Eu queria que você
fizesse um trabalhinho pra mim.”
“Despacho?”, indagou Zé Espinguela.
Como alufá, sacerdote do culto malê — a fé muçulmana matizada pelos
saberes africanos —, Espinguela estava habituado a receber encomendas de
mandingas e rezas brabas por parte de figurões da política, das artes, do
jornalismo e da alta sociedade em geral. No sincretismo da então capital
brasileira, malgrado as cargas de temor e preconceito explícitos, era
corriqueiro o contato furtivo entre certos representantes das elites e os

terreiros das religiões afro-brasileiras.
“Nada disso. É um trabalhão, na realidade”, esclareceu o maestro.
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A proposta profissional que Heitor Villa-Lobos tinha a fazer a Espinguela
era tão audaciosa quanto, aparentemente, inesperada. O autor das Bachianas
brasileiras queria que ele o ajudasse a ressuscitar uma antiga tradição do Rio,
o desfile dos cordões carnavalescos, desaparecidos desde o início do século
XX, havia cerca de quatro décadas, por força da repressão policial. De acordo
com o músico, não haveria problemas com a habitual truculência dos
meganhas ou com a falta de dinheiro. Como diretor do Departamento de
Música da Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal, Villa
conseguira o aval e o patrocínio do todo-poderoso Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP) — órgão responsável pela censura e pela
promoção política, artística e cultural do Estado Novo, ditadura imposta ao
país havia pouco mais de dois anos, em 1937, por Getúlio Dornelles Vargas.
O alufá Espinguela ficou sabendo que o nome do grupo carnavalesco
concebido por Villa-Lobos seria Sodade do Cordão. A corruptela da palavra
serviria para reforçar a nota de nostalgia brejeira e o tom de pretendido
tradicionalismo à empreitada. “O nosso cordão tem finalidades que faço
questão de frisar”, diria Villa ao jornal A Noite. “A primeira seria animar o
espírito nacionalista do nosso povo, que vem sendo dirigido de maneira
patriótica pelo Estado Novo.”
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Quando publicados com ares solenes no Diário Oficial da União, em
janeiro de 1940, os estatutos da agremiação deixariam registrado para a
posteridade o seu objetivo formal:
Apresentar-se ao público nos dias consagrados à Sua Majestade, rei Momo, e empregar
todos os esforços a fim de reviver as características tradicionais de danças, brados e
costumes desse gênero de manifestações populares, para poder servir de documentação
histórica nacional nas pesquisas patrióticas das instituições oficiais brasileiras.

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