Naquela


quinta-feira voltamos ao Treno's e, a partir da semana seguinte, como
tínhamos combinado, reunimo-nos ali todas as terças e quintas, no fim
da aula oficial de catalão. Chegávamos pouco depois das seis,
sentávamos na mesa ao pé da lareira, pedíamos Coca-Cola (para ele),
cerveja (para mim) e começávamos a conversar até o lugar fechar, por
volta das nove. Sobretudo durante os primeiros dias tentava dedicar
todo o tempo possível a fazer com que Rodney adquirisse os
rudimentos do catalão mas, pouco a pouco, a indolência ou o
aborrecimento venceram-nos e o dever da aprendizagem deu lugar ao
prazer da conversa. Não é que não falássemos também nos tempos
livres de que dispúnhamos no gabinete, mas fazíamos de uma forma
descontínua ou distraída, entre o ramerrão de outras ocupações, como
se aquele fosse um local inadequado para prolongar as conversas do
Treno's; pode ser que, pelo menos, Rodney assim o entendesse ou que,
por algum motivo, quisesse evitar que no departamento soubessem da
nossa amizade. O caso é que, mal comecei a relacionar-me com ele
fora do gabinete, pressenti que havia uma discrepância fundamental,
embora para mim indefinível, entre o Rodney que eu conhecia e o que
os meus colegas de departamento conheciam, apesar de os dois
partilharem o mesmo físico deteriorado e o mesmo ar de extravio,
como se tivessem acabado de acordar e a teia do sono ainda lhes
cobrisse os olhos. Mas o que naquele momento não podia pressentir
de maneira nenhuma é que essa discrepância estava vinculada à
própria essência da personalidade de Rodney, a um centro nevrálgico
que ele mantinha escondido e ao qual, por essa altura, ninguém — de
certa forma nem sequer ele próprio — tinha acesso.
Não guardo uma lembrança fiel daquelas tardes do Treno's,
mas algumas delas são bastante intensas. Lembro-me, por exemplo,

da atmosfera cada vez mais carregada do bar à medida que a noite
avançava e o local se ia enchendo de estudantes que liam, escreviam
ou conversavam. Lembro-me da cara jovem, redonda e sorridente de
uma empregada de mesa que costumava servir-nos e de uma má
reprodução de um retrato de Modigliani que pendia de uma parede,
mesmo à direita do balcão. Lembro-me de Rodney alisando de vez em
quando o cabelo revolto e reclinando-se incômodo na sua cadeira,
esticando na direção da lareira as pernas que quase não lhe cabiam
debaixo da mesa. Lembro-me da música que se ouvia pelas colunas de
som, muito ténue, quase como um eco distorcido de outra música, e
lembro-me de que essa música me fazia sentir que não estava num bar
de uma cidade do Middle West ao final dos anos oitenta, mas nos fins
dos anos setenta num bar de Gerona, porque era a música dos bares
da minha adolescência em Gerona (coisas como Led Zeppelin, como
ZZ Top, como Frank Zappa). Lembro-me muito bem de um pormenor
curioso: a última canção que punham todas as noites, como um aviso
discreto aos clientes habituais de que o bar ia fechar, era It's alright,
ma (I'm only bleeding), uma velha canção de Bob Dylan que Rodney
adorava porque, como a mim os ZZ Top me devolviam o desconsolo
sem horizontes da minha adolescência, a ele era-lhe devolvido o júbilo
hippy da sua juventude, ainda que se tratasse de uma canção
tristíssima que falava de palavras desiludidas que ecoam como balas e
de cemitérios a abarrotar de falsos deuses e de gente solitária que
chora e tem medo e vive num poço sabendo que tudo é mentira e que
compreendeu cedo de mais o que não vale a pena tentar compreender,
e esse júbilo era-lhe talvez devolvido graças a um verso que eu
também não consegui esquecer: “Quem não está ocupado em nascer
está ocupado em morrer”. Lembro-me também de outras coisas.

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